Quando lí este texto do sociólogo Luis Fernando Novoa Garzon em 2005, sobre o atentado ao metrô de Londres pensei em guarda-lo, pois é o tipo de texto que eu gosto: ácido, direto e profundamente verdadeiro. Sem rodeios, sem meias verdades ou meias palavras formas tão comuns na mídia, na política e nos movimentos sociais. Ele nos fala muito sobre a infâmia e a perversidade do imperialismo e os seus tentáculos midiáticos, políticos e sociais. Depois de 5 anos, continua atual. Para não esquecer as bombas e condenar sempre, qualquer forma de terrorismo, seja de grupos ou do estado.
Dica: Sobre o atentado terrorista a Hiroshima e Nagazaki, assistam ao filme "Luz branca/Chuva Negra" (disponível no Comitê Municipal do partido).
A ordem que se inscreve em carne viva
Mais uma operação de captura de suspeitos dos atentados em Londres. No corredor de um daqueles clássicos prédios de tijolos vermelhos ouvem-se gritos, “Maomé! Maomé!” e a correria se instaura. Elementar, meu caro Watson, só pode ser contagem regressiva! Os índios, ervas daninhas. Os judeus, ratos e insetos. Os comunistas, canibais ateus. Os islâmicos, bombas ambulantes. O outro não é só o problema, o outro é o que explode ou o que vai explodir. O Islã foi reinventado para ser o espelho invertido do Ocidente. Aí está uma “civilização” de fato, a compartilhar valores e perspectivas convergentes, o medo, o racismo e o sentimento de superioridade.
Não custa lembrar que não existem condições materiais ou simbólicas para a forja de um projeto de unidade da área de influência muçulmana. O mundo islâmico já foi irremediavelmente ocidentalizado, o que desautoriza qualquer inferência a ressurgências religiosas a partir de “resíduos” integristas. Séculos de fragmentação e instrumentalização patrocinados pelas potências imperialistas não deixaram pedra sobre pedra. Nas últimas quatro décadas, o fundamentalismo islâmico foi deliberadamente insuflado pelos serviços de inteligência norte-americanos e israelenses, ora contra a expansão soviética, ora contra o nacionalismo árabe.
Conspiracionismo nos olhos de quem?
Assumida a autoria dos atentados por “mujahedins”, guerreiros do Islâ, quem vai duvidar de sua verdadeira extração e notar que suas práticas, propósitos e linguagem são completamente estranhos à tradição cultural que dizem representar? Feita a proclama em forma de duelo civilizacional, quem vai se importar com a efetividade ou a isenção de um Tribunal Penal Internacional? O que pode abalar a certeza de que os atentados terroristas só são exequíveis se perpetrados por fanáticos suicidas? E daí se os homens-bomba, como tática coletiva de resistência, expressem um fenômeno circunscrito aos territórios palestinos? Os providenciais documentos de identidade colados aos pedaços dos corpos dizem quase tudo; os relatórios de atividades e viagens suspeitas dos incriminados, dizem o que falta. Há sempre quem engula provas consubstanciadas e arroladas por parte interessada, ou seja, por forças militares e de segurança empenhadas no aprofundamento da Guerra Global ao Terrorismo.
Se não há registro de manipulação, não há e nunca houve, certo? Esqueçamos todas as operações clandestinas e as infiltrações praticadas com fito de criminalização de grupo ou país determinado, desde as guerras neocoloniais até as atuais guerras assimétricas. Diante de tão bons antecedentes, admitir a utilização desses expedientes nos marcos da Guerra contra o terrorismo, seria de um imperdoável conspiracionismo. Quem vai querer incorrer em forma tão primária de concatenação, transferindo a grupo, malévolo e poderoso, a maquinação dos acontecimentos? Deve ser por isso que ninguém nega a “realidade” do movimento jihadista global inspirado por Osama Bin Laden, líder disposto a submergir a modernidade para reconstruir o califado de Maomé. Um oponente capaz de levar o mundo como o conhecemos às raias do Apocalipse, com armas de destruição em massa e guerreiros suicidas! Sim, a isso chamam “constatação racional”.
A razão, antes a reboque dos básicos instintos, em forma de borrão seletivo, justificando linearidades entre abismos, hoje adianta-se orgulhosa do fim de tal alienação. Agora é a própria que concebe os estragos , que se engrandece com eles e, que, no fim, os batiza como “liberdade duradoura” e “justiça infinita”. A Doutrina Bush, é a amostra mais representativa dessa razão megalômana. Ataques preventivos a Estados previamente classificados como canalhas, administração fragmentadora dos territórios ocupados a induzir um quadro de guerra civil permanente, sobreposição da agenda da segurança sobre todas as demais em defesa do “único modo civilizado de vida”, que só os mercados propiciam. Montado um regime totalizador desses, podemos dispensar os terroristas. Não haveria terror equiparável.
A arquitetura da segregação
A tecnologia de guerra urbana desenvolvida pelas Forças Armadas e serviços de inteligência israelenses foi requerida por Blair para a montagem do Panóptico inglês. A desterritorialização palestina e a desmedulação de suas organizações de resistência, se tornaram paradigmáticas. Um sistema de vigilância pós-prisional de grades intangíveis, ou seja, presentes em todo lugar. A biometria do ressentimento e sua escala de periculosidade segundo a origem, etnia e histórico comportamental. Os ritos sumários nos Juizados especiais anti-terroristas. Os ainda mais sumários assassinatos extra-judiciais. Armas, bombas, veículos de uso e potencial variável em adequação a sistemas flexíveis de comando, controle, comunicação e inteligência. A destruição da infra-estrutura que dava suporte à rebelião e a construção de uma nova, sintetizadora do espaço. O urbanismo e a arquitetura da segregação.
Prove não ser terrorista depois disso, determina a nova máquina contra-terrorista, já em operação em Londres. Portentoso sistema capaz de administrar múltiplas esferas de risco e, através de mortíferas incursões preventivas, de antecipar-se a novos ataques,. A execução é infalível porque instruída e orientada em tempo real. O corpo de elite da polícia inglesa, que liquidou o brasileiro Jean Charles de Menezes, não cometeu falha alguma, não nos iludamos. As desculpas de Blair são protocolares, e não alteram uma vírgula dos critérios que atestam a letalidade da operação. Comportamento suspeito, biometria de risco, foco cabível, enquadrado na mira. Detone a cabeça antes que o corpo detone, diz o manual de instrução.
Não ser metropolitano plenamente integrado à sociedade de mercado não é apenas condição desmerecedora, mas vexaminosa, repulsiva, pré-criminosa. Não basta não ser terrorista, é preciso não parecer. Aos fracos, o ônus da prova. As áreas de exclusão, os amontoados de gente reciclada e descartada pela globalização assimétrica, passam da invisibilidade a alvos de tiro. Antes eliminados porque não reconhecidos, agora reconhecidos como elimináveis. A máquina é mais inteligente e sincera que seus operadores, adivinhando desejos, precipitando vontades.
O dedo na ferida move o corpo
Os atentados foram instrumentalizados para encobrir convulsões e estertores de um capitalismo incapaz de se reproduzir sem doses extras de barbárie. Não é o Bush, estúpidos! Como pode ser estúpido alguém que faz uma multidão incontável deles parecer inteligente? As decisões que importam já foram tomadas em nome de todos e a grande maioria se sente muito confortável assim. Atrofiados por décadas, por anos e por cada segundo, só podem advogar a impropriedade de qualquer movimento.
Ao perder os limites de si mesmos, em um mundo em que os arcabouços coletivos estão sendo implodidos em função das garantias da rentabilidade e segurança, que resta senão fazer da auto-destruição a única busca de identidade possível? Busca às cegas, como toda busca humana, sinceramente auto-negada. Lá, o fanatismo, dizem os adoradores de mercadorias. Lá, a violência gratuita, apontam os beneficiários diretos e indiretos do lucrativo mercado da guerra. Lá, os adoradores da morte, dizem, os que descobriram enfim o sentido da “vida”. Sentido! Descansar! Consumir! Verdades sucessivamente inscritas em carne viva. O indivíduo é atingido em seu invólucro, em seus centros de lazer, em suas cápsulas, em seus veículos de locomoção. O “novo homem” da civilização de consumo não pode ser outra coisa que não uma imensa ferida, lanhada e relanhada, incicatrizável.
Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, membro da ATTAC.
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