Por AUGUSTO C. BUONICORE
Ele se chamava Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly. Um nome pomposo para alguém que havia nascido numa carroça, em Rio Grande, interior do Rio Grande do Sul, filho de uma índia charrua. O próprio Torelly contou, bem humorado, a história do seu nascimento: "Viajava com minha mãe numa diligência quando uma roda teve o aro quebrado. Com todo aquele barulho, nada mais natural que eu me apressasse a sair para ver o que se passava". Era 29 de janeiro do ano da graça de 1895.
A triste infância de Torelly, decerto, não anunciava o humorista talentoso que faria rir gerações de brasileiros. Logo cedo perdeu a mãe. O pai era um homem truculento e de poucas palavras. Aos nove anos foi internado num colégio dirigido por austeros jesuítas alemães. Apesar do ambiente repressivo, aos 14 anos elaborou seu primeiro jornalzinho manuscrito, o Capim Seco, no qual já começava a revelar sua veia humorística.
Terminado o colégio, à contra-gosto, foi cursar medicina em Porto Alegre, que acabou abandonando no 4ª ano. Contam que numa prova oral, um dos professores perguntou-lhe "Conhece esse osso?", ele disse “ainda não” e apertou-lhe dizendo: "Muito prazer em conhecê-lo".
Neste período publicou poemas e artigos em diversas revistas e passou a se dedicar exclusivamente ao jornalismo. Fundou inúmeros e efêmeros jornais entre eles O Chico, dedicado ao humor. Casou-se, pela primeira, vez com Alzira Alves com quem teve três filhos.
Por indicação médica, em 1925, partiu para o Rio de Janeiro. Ali procurou a redação de O Globo. "O que o senhor veio fazer?", perguntou-lhe Irineu Marinho. Para o qual respondeu irônico: "Tudo, de varrer a redação a dirigir o jornal. Creio não haver muita diferença". Foi imediatamente contratado. Depois de alguns meses se transferiu para A manhã, no qual passou a publicar uma coluna humorística intitulada “A manhã tem mais ...”. Mas, o sonho de Apparício era ter o seu próprio jornal. Em menos de um ano deixou A Manhã para fundar outro periódico intitulado ironicamente A Manha – um órgão de ataque ... de risos. Este vem ao mundo no dia 13 de maio de 1926 – uma forma encontrada de homenagear a abolição da escravidão e a sua própria.
O jornal foi um sucesso e transformou-se numa referência do novo humorismo jornalístico. Ele utilizou, pela primeira vez, da fotomontagem para ridicularizar os governantes e as elites brasileiras. Apesar da boa repercussão, a situação financeira se agravou rapidamente. Entre os anos de 1929 e 1930 teve que circular como encarte do jornal Diário da Noite, pertencente a Assis Chateaubriand. Naquela conjuntura de crise política, colocou-se então ao lado dos revoltosos da Aliança Liberal, encabeçada por Vargas.
Em homenagem àquela que deveria ter sido, e não foi, a maior batalha da “Revolução de 1930” se auto-intitulou Duque de Itararé. Mais tarde, dando prova de extrema modéstia, rebaixou seu título para Barão de Itararé. Nesta região de São Paulo havia se concentrado o grosso das tropas legalistas que deveria deter as forças revolucionárias que vinham do sul. Anunciava-se um grande e sangrento conflito. Mas, os generais acabaram destituindo o presidente Washington Luís e não houve batalha alguma naquele lugar. As tropas comandadas Vargas simplesmente contornaram e seguiram triunfante ao Rio de Janeiro, onde amarraram seus cavalos no Obelisco.
Porém, o namoro com o novo regime durou pouco. Logo Aporelly – agora Barão de Itararé – voltou a suas baterias contra o governo revolucionário de Vargas. Gostava, por exemplo, de chamar o poderoso general Góes Monteiro de “general Gás Morteiro”. Trocadilhos como estes lhe custaram sua primeira prisão, ainda em 1932.
No final de 1934 fundou o Jornal do Povo – publicação antifascista e com forte influência comunista. Durou apenas 10 dias e foi o centro de um escândalo político. Na suas páginas o Barão publicou uma série de artigos sobre a vida de João Cândido, o Almirante negro que comandou, com maestria, a revolta dos marinheiros em 1910. Isto foi encarado como uma afronta a Marinha de Guerra brasileira.
A sede do jornal foi invadida, o Barão seqüestrado, violentamente espancado e teve seus cabelos cortados por oficiais daquela arma. Isto acarretou protestos por todo o país, inclusive na Câmara dos Deputados. Os agressores jamais foram punidos. Sem perder o humor, o Barão achou aconselhável mudar a tabuleta na entrada de seu escritório. A nova inscrição dizia simplesmente: “entre sem bater!”.
A principal vítima do Barão era os integralistas de Plínio Salgado. Gostava de dizer que, acidentalmente, quase entrou para as hostes dos “camisas verdes” quando ouviu um deles gritando “Deus, Pátria e Família”, pois havia entendido: “Adeus pátria e família”. Ele era um inimigo do militarismo e do belicismo tão em voga naqueles anos turbulentos, que já anunciavam a eclosão de uma segunda guerra mundial. Gostava de dizer: “Como se chama o assassinato de uma criancinha? Infanticídio. E o assassinato de uma porção de criancinhas? Infantaria”.
Ao lado do perigo de uma guerra iminente, crescia a ameaça do domínio planetário do nazi-fascismo. Por isso mesmo, o Barão foi um ativo organizador e militante da Aliança Nacional Libertadora. Após o levante armado, comandado por Prestes, ocorrido em novembro de 1935, foi preso e ficou encarcerado até o final de 1936. Primeiro no navio-presídio Dom Pedro I e depois na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, ao lado de nomes como Graciliano Ramos. No Dom Pedro I deixou crescer uma barba a la Dom Pedro II. Esta passaria ser uma das marcas registradas do Barão.
Dizem que quando o juiz federal lhe perguntou por qual motivo acreditava ter sido preso, ele afirmou que, possivelmente, teria sido graças ao cafezinho. Diante do juiz perplexo explicou: sua falecida mãezinha o havia avisado para tomar cuidado com o excesso de café. Justamente naquele dia ele havia parado num bar e tomado oito xícaras e, assim, a polícia conseguiu prendê-lo. O Barão era um daqueles que perdia um amigo (e a liberdade), mas não perdia uma boa piada.
No seu livro Memórias do Cárcere, o mestre alagoano descreveu o convívio com o velho Barão. Sempre alegre, buscando animar seus companheiros de infortúnio, aparentando um otimismo a toda prova. Mas, nesta mesma obra, podemos notar a amargura sentida por este homem nas noites sombrias da prisão, que mais parecia um campo de concentração. Talvez para ele, mais do que para qualquer outro, a cárcere tenha sido uma experiência atroz. O sentimento de desolação era aumentado pela morte de sua segunda esposa, ocorrida enquanto estava preso, e pela preocupação com seus filhos que estavam entregues a um amigo pouco confiável.
O Barão foi solto em dezembro de 1936 e, imediatamente, reorganizou A manha. Novamente, ela se transformou numa trincheira na luta contra o fascismo e seus representantes no país: o integralismo. O golpe do Estado Novo, em dezembro de 1937, impediu a continuação de um jornal tão irreverente. O Barão teve que buscar outro “ganha pão” e foi trabalhar no Diário de Notícias, no qual ficaria por cerca de seis anos. A repressão política continuava seguindo seus passos. Em janeiro de 1939 voltou a fazer uma breve “visita” à carceragem da polícia política de Vargas. Em 1940 perdeu sua segunda esposa num parto mal sucedido. Menos de quatro anos depois morreu uma das filhas de seu primeiro casamento, vítima de complicações pós-operatórias. Nuvens sombrias encobriam a vida do humorista.
Incansável, em 1945 encabeçou o abaixo-assinado exigindo liberdades democráticas. No mesmo ano voltou editar A Manha. O clima político, marcado pela democratização do país, era amplamente favorável a uma publicação daquele tipo. Entrou de cabeça na campanha eleitoral do PC do Brasil (PCB). A vitória do Partido, que elegeu 14 deputados federais e um senador, encheu-o de alegria.
No início de 1947 ele seria um dos candidatos a uma cadeira na Câmara Municipal do antigo Distrito Federal, atual Rio de Janeiro. A cidade vivia uma constante falta de água e, nas padarias, os proprietários adicionavam água no leite, burlando as leis e prejudicando os pobres fregueses. Por isso, decidiu que seu lema de campanha seria “mais leite, mais água e menos água no leite”. Foi eleito vereador pela chapa comunista, passando a compor a maior bancada do legislativo municipal. Afirmou Prestes: “o Barão com seu espírito não só fez a Câmara rir, como as lavadeiras e os trabalhadores. As favelas suspendiam as novelas para ouvir as sessões da Câmara, que eram transmitidas pelo rádio”.
Naqueles dias memoráveis, quando circulava pelos corredores do Senado, encontrou o ex-ditador Getúlio Vargas. Este, sorridente, se dirigindo a ele exclamou: “Até tu, Barão?”. Este, sem pestanejar, respondeu irônico: “Tubarão é o senhor, eu sou apenas o Barão de Itararé”. Por outro lado, a oposição liberal-conservadora questionava as constantes mudanças de opinião política dos comunistas: uma hora apoiando Vargas, outra hora atacando-o. Sem perder a compostura, respondeu aos críticos: “Não é triste mudar de idéias; triste é não ter idéias para mudar”.
O registro do PC do Brasil foi cancelado em maio de 1947 e, em janeiro de 1948, os parlamentares comunistas foram cassados. Entre as vítimas deste ato arbitrário estava o Barão. Ele afirmou solene: “saio da vida pública para entrar na privada”. Neste mesmo ano, devido à repressão política e à crise financeira, A Manha deixou de circular. A situação ficou muito feia para o lado do Barão. “Devo tanto que, seu chamar alguém de ‘meu bem’ o banco toma”, escreveu ele.
Na pendura, se uniu ao cartunista Guevara e lançou o Almanhaque – ou Almanaque d’A Manha. O sucesso levou-o a reorganizar o jornal, desta vez na capital paulista. Contudo, a alegria de pobre dura pouco e, em 1952, o jornal deixou de circular. O fim de A manha não significou o fim da carreira do velho Barão. Ele passou a colaborar com o jornal Última Hora e lançou ainda dois Almanhaques em 1955. Durante da crise que ameaçava derrubar Getúlio lançou a frase que fez carreira entre os comentaristas políticos: “Há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira”.
Em 1955 casou-se pela quarta vez. Pouco depois ocorreu uma nova tragédia. Sua esposa se suicidou. A morte parecia acompanhá-lo, buscando retirar dele toda alegria. Já cansado e doente voltou para o Rio de Janeiro. Sua última velhice passou sozinho e doente num pequeno apartamento. Estava pobre e quase esquecido. Dedicava-se aos estudos matemáticos e à numerologia. Parecia que tinha dificuldades em se adaptar às rápidas transformações pelas quais passava seu país. Seus olhos, possivelmente, viam com tristeza a constituição uma modernidade capitalista associada à miséria e ao autoritarismo. Vivíamos em plena ditadura militar. A boca pequena dizia-se que enlouquecia dia-a-dia.
Mais do que nunca, uma de suas inúmeras máximas traduziria seus sentimentos mais profundos e a trágica situação em que vivíamos: “Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato”. No dia 27 de novembro de 1971 falecia o Barão de Itararé. Uma amiga afirmou: “Morreu sozinho para que não sofressem por ele”. Poucas pessoas compareceram ao seu enterro e um jornalista apressado afirmou, sem graça, que os tempos do velho Barão já haviam passado. Será mesmo? Eu, ao contrário, diria que talvez os tempos do velho Barão ainda não tenham chegado.
Em tempo. Escreveu ele: “Nunca desista de seu sonho. Se acabou numa padaria, procure em outra”. É isso aí, Torelly. As padarias do mundo ainda nos parecem infinitas.
Aqui pode-se ver o brasão da Casa de Itararé:
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